Quando Quem Cuida Também Precisa de Cuidado: Combate ao Abuso e Assédio na Atuação das Psicólogas - Por Mirelly Conceição do Carmo
- tkfabcar
- 11 de ago.
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A atuação das psicólogas em múltiplos espaços profissionais envolve não apenas o cuidado direto com o sofrimento alheio, mas também a construção de vínculos de confiança essenciais para a promoção da saúde mental. Entretanto, paradoxalmente, esses mesmos ambientes, marcados pela relação de cuidado, podem se tornar palco de práticas abusivas, como o assédio moral e sexual, que comprometem a integridade física e psicológica das profissionais. A compreensão desse fenômeno é urgente, pois “o cuidador também precisa de cuidados”, premissa que fundamenta a necessidade de proteção efetiva para essa categoria.
Segundo o CensoPsi (2022), a Psicologia é uma profissão predominantemente feminina, historicamente associada a funções de cuidado. Essa condição, embora valorize a dimensão afetiva e relacional da profissão, expõe as psicólogas a riscos elevados de assédio moral e sexual. Dados nacionais apontam que a violência psicológica no trabalho atinge aproximadamente 11% dos trabalhadores brasileiros, sendo que profissionais de saúde, como psicólogas, estão entre os grupos com maior incidência desses agravos (Trindade et al., 2022).
Em ambientes de trabalho, mulheres são desproporcionalmente vítimas de assédio moral e sexual, como reflexo de estruturas patriarcais e práticas machistas institucionalizadas. Revisões da literatura destacam que profissões majoritariamente femininas apresentam maior suscetibilidade ao assédio sexual, manifestado em comentários inadequados, toques indesejados, convites constrangedores e outros comportamentos humilhantes, muitas vezes perpetuados por relações de poder e sexismo arraigado (Heise, 2019).
A violência de gênero no trabalho não é um problema individual, mas sim manifestação de desigualdade estrutural. Conforme apontado por Salin (2021) e Heise (2019), a construção social de gênero posiciona mulheres em papéis subordinados, legitimando práticas abusivas no ambiente organizacional. Estudos também revelam que mulheres são frequentemente as principais vítimas de assédio moral, em um caso, 65% das mulheres relataram comportamento abusivo repetido, enquanto apenas 35% dos homens se manifestaram nesse sentido (TRT-MG, 2023). Essa disparidade exige que políticas públicas, canais institucionais e programas de prevenção incorporem uma análise de gênero clara, reconhecendo essas formas de violência como consequência de desigualdades históricas e culturais.
O assédio — seja moral, sexual ou institucional — pode gerar estresse pós-traumático, diminuição da autoestima e até burnout (Maslach & Leiter, 2016). Essas consequências afetam não só as profissionais individualmente, mas toda a rede de cuidados que delas depende, ampliando o dano coletivo.
O vínculo de confiança com clientes, combinado à informalidade de muitos ambientes de atuação (como clínicas particulares ou atendimentos domiciliares), pode expor psicólogas a situações de vulnerabilidade. Para o Conselho Federal de Psicologia (2025), a complexidade de determinados ambientes de trabalho exige a implementação de protocolos de segurança adaptáveis, capazes de prevenir riscos e proteger a integridade física e psicológica das profissionais, medida que deve ser aplicada também à própria categoria. Esses protocolos precisam garantir condições para o exercício profissional livre de assédio moral e sexual, promovendo ambientes de trabalho que respeitem a dignidade e os direitos humanos.
No campo das políticas públicas, a atuação das psicólogas também enfrenta um fator agravante: a troca frequente de gestores e mudanças políticas pode gerar ambientes instáveis e permeados por disputas de poder. Em tais contextos, há relatos de aumento do assédio moral e institucional, especialmente quando a profissional atua em defesa de princípios técnicos e éticos que entram em conflito com interesses políticos. Segundo Barcellos (2022) esses períodos de transição administrativa tendem a intensificar práticas abusivas, seja por retaliação velada, isolamento funcional ou remoções arbitrárias, configurando estratégias de controle político e manipulação ideológica.
A prevenção começa com a existência de canais de denúncia seguros, confidenciais e de fácil acesso, que garantam sigilo e proteção à denunciante. Estudos da ONU Mulheres (2022) apontam que a ausência de confiança nesses canais é a principal razão para a não denúncia de situações de abuso.
A denúncia por si só não é suficiente (embora necessária); é preciso um acolhimento imediato. Nesse sentido, criar redes de solidariedade, fóruns, grupos de supervisão e apoio entre psicólogas, pode fortalecer o apoio mútuo e a capacidade de enfrentamento. Essas redes fornecem espaço validado para compartilhamento e elaboração de estratégias de autocuidado coletivo.
A prevenção também deve estar presente desde a formação acadêmica. Incluir nos cursos de psicologia discussões sobre identificação de assédio, ética profissional e autodefesa emocional contribui significativamente para o desenvolvimento de uma postura mais consciente e proativa diante de situações abusivas. Conforme destacado por Glina e Soboll (2020), a capacitação precoce por meio da grade curricular reforça a preparação dos futuros profissionais para reconhecer, prevenir e intervir de forma ética em episódios de assédio no ambiente de trabalho (isso inclui eles próprios).
Programas integrados de prevenção que combinam formação, protocolos institucionais e acolhimento psicológico têm potencial para reduzir efetivamente episódios de assédio. No estudo de Tsukamoto et al. (2019), que mapeou violência ocupacional em equipe de enfermagem (área correlata à Psicologia), foram identificados elevadores índices de abuso verbal (59,1 %) e assédio sexual (12,8 %), o que evidencia a necessidade de intervenções estruturadas para prevenção e suporte institucional.
Ao receber denúncias, é fundamental que haja investigação célere e imparcial, com medidas disciplinares adequadas. A impunidade fortalece a cultura de silenciamento. Os Conselhos de Psicologia têm papel central na orientação e proteção profissional, atuando de forma proativa: produzindo diretrizes, obtendo orientação, apoiando a atuação segura e protegida das psicólogas, fortalecendo o enfretamento de abusos e recebendo denúncias de abusos no exercício da profissão.
“Aquele que escuta também precisa ser escutado”. Psicólogas expostas ao sofrimento alheio e a situações abusivas necessitam de supervisão clínica regular, grupos de apoio e políticas de prevenção de burnout.
É preciso, portanto, reconhecer que o trabalho da psicóloga é emocionalmente exigente significa entender que a proteção contra o assédio não é apenas uma medida de segurança, mas uma condição para que a prática profissional se mantenha saudável e sustentável.
O combate ao abuso e assédio contra psicólogas exige uma abordagem multifacetada — aliando prevenção, acolhimento, responsabilização e cultura de cuidado. Garantir espaços seguros e apoio psicológico fortalece a categoria, melhora a qualidade do atendimento e protege o exercício ético da profissão.
É imprescindível que instituições, conselhos, políticas públicas, espaços de trabalho e a formação acadêmica reconheçam que “o cuidador também precisa de cuidados” e atuem de forma coesa para estruturar políticas eficazes. Somente assim construiremos ambientes nos quais psicólogas estejam protegidas, acolhidas e habilitadas para exercer com segurança, dignidade e qualidade.
Referências bibliográficas
BARCELLOS, C. Assédio Moral na Administração Pública Brasileira: um estudo de caso de uma Instituição de Ensino e Pesquisa. Lisboa, 2022. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2022. Disponível em: https://repositorio.ulisboa.pt/bitstream/10400.5/29927/1/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20-%20Carla%20Barcellos.pdf. Acesso em: 9 ago. 2025.
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HEISE, L. et al. Gender inequality and restrictive gender norms: framing the challenges to health. The Lancet, 393(10189), 2440-2454. doi: 10.1016/S0140-6736(19)30652-X, 2019.
Maslach, C., & Leiter, M. (2016). Burnout: The Cost of Caring. Malor Books.
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SUKAMOTO, S. A. dos S. G. et al. Violência ocupacional na equipe de enfermagem: prevalência e fatores associados. Acta Paulista de Enfermagem, São Paulo, v. 32, n. 4, p. 425-432, 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ape/a/zsWcgZcwWy5cX6YHJTdBBLD/?lang=pt. Acesso em: 8 ago. 2025.



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