Quando o cuidado derruba muros: Psicologia, Redução de Danos e Direitos - Por Clarissa Guedes
- tkfabcar
- 11 de ago.
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“Por que os humanos usam drogas?” — a pergunta, explorada pelo professor Antônio Nery, parece simples à primeira vista, no entanto ela precisa ser retomada sempre que formos pensar em estratégias de cuidado no campo das drogas. Nery Filho (2010) afirma que homens e mulheres sempre fizeram uso de alguma substância psicoativa justamente por serem humanos e conviverem com a angústia de se saberem mortais.
Do mesmo modo, Espinheira (2004) situa o lugar das drogas nos tempos e nos espaços sociais e culturais da existência, e Ribeiro (2009) compreende o recurso às drogas como “uma resposta possível ao mal-estar que é inerente tanto ao processo de formação das sociedades e culturas como também à própria constituição psíquica do ser humano” (RIBEIRO, 2009, p. 334). Esses autores apontam, assim, que antes de ser um problema contemporâneo, o uso de substâncias psicoativas é uma questão humana.
Os estudos sobre os aspectos socioculturais do uso de drogas contribuíram para lançar luz sobre a importância de se conhecer o contexto cultural em que acontece o uso e os sentidos que os usuários dão a esse ato (BUCHER, 1992), o que também permitiu conhecer como os próprios usuários constroem mecanismos informais de controle do seu uso e de seus pares (GRUND, 1993). Essas concepções tornam possível deslocar as substâncias psicoativas do lugar de “demonizadas” e de um grande mal a ser combatido, passando a ser pragmaticamente compreendidas como substâncias com propriedades farmacológicas importantes, mas com as quais os sujeitos, dentro de um contexto específico, podem conviver, evitando riscos e minimizando danos.
No Brasil, entretanto, o debate sobre drogas ainda é predominantemente marcado por um imaginário social que associa seu uso à criminalidade, ao fracasso moral e à desordem. Essa narrativa, alicerçada no modelo proibicionista, não apenas falha em produzir cuidado efetivo, mas também alimenta um mercado lucrativo de internações forçadas em comunidades terapêuticas e clínicas, muitas vezes distantes de qualquer compromisso com os direitos humanos. Como denunciam os movimentos antiproibicionistas, a “guerra às drogas” não reduz o consumo nem produz cuidado efetivo; ao contrário, promove encarceramento em massa, sobretudo da juventude negra e periférica, porque, na prática, trata-se de uma guerra contra as pessoas.
Esse modelo, ao amparar pretensões de cuidado, fracassa porque adota uma lógica de exclusão: isola-se o usuário, prescreve-se abstinência compulsória e ignora-se a complexidade do fenômeno. Por outro lado, a perspectiva da redução de danos reconhece que o uso de drogas é um fenômeno social e culturalmente situado. Compreendê-lo e, sobretudo, pensar em estratégias efetivas de cuidado exige atenção às histórias de vida, aos contextos e às funções que as substâncias cumprem para cada pessoa, ou seja, às singularidades. É nesse ponto que a Psicologia, como ciência e profissão, tem apresentado contribuições decisivas.
Para exemplificar, as orientações técnicas do Crepop nesse campo estabelecem que o cuidado deve ser pautado pela escuta qualificada, pelo respeito à singularidade e pela construção compartilhada de estratégias (CFP, 2019). A atuação das psicólogas se sustenta na clínica do caso a caso, na qual o projeto terapêutico é individualizado, dialogando com a rede de atenção e com as escolhas da própria pessoa.
A redução de danos, nesse cenário, deixa de ser apenas um método para se afirmar como postura ética. Como define Andrade (2006), trata-se de um conjunto de estratégias que visam minimizar danos sociais e à saúde associados ao uso de drogas, sem a exigência da interrupção do consumo como condição para o cuidado. Isso significa reconhecer que proteger a vida é prioridade, mesmo que a abstinência não seja alcançada ou desejada em um primeiro momento, permitindo construir intervenções que respeitam os tempos e modos de cada pessoa.
Defender o cuidado em liberdade, articulado na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), é afirmar que ninguém se reintegra à vida sendo retirado dela. É também assegurar suporte a famílias e comunidades e reivindicar que o Estado invista em políticas baseadas na ciência, e não em crenças moralistas ou interesses econômicos. Trata-se de restituir à pessoa que usa drogas a condição de sujeito de direitos — e não de objeto de tutela ou repressão.
A Psicologia não traz respostas prontas, mas contribui para reformular as perguntas e propor práticas capazes de transformar realidades quando recusa ser instrumento de punição travestida de cuidado. Superar o proibicionismo exige mais do que mudar leis: requer enfrentar os interesses econômicos que se beneficiam do encarceramento e da internação compulsória e afirmar políticas públicas que garantam cuidado em liberdade, articulação intersetorial e participação social. A redução de danos não é apenas uma metodologia de saúde, mas um projeto ético-político que coloca a vida, a dignidade e os direitos no centro.
Como sociedade, precisamos aceitar que a integração de pessoas que usam drogas passa por acolhimento, não por exclusão. A Psicologia, com seu compromisso ético-político, pode e deve ocupar um lugar estratégico nesse processo: construindo pontes, redes de apoio e derrubando muros. Já passou da hora de abandonar a ilusão de que o proibicionismo nos protege e investir no que de fato protege: vínculos, políticas públicas e respeito às singularidades.
Referências
ANDRADE, Tarcísio Matos de; FRIEDMAN, Samuel R. Princípios e práticas de Redução de Danos: interfaces e extensão a outros campos da intervenção e do saber. In: SILVEIRA, Dartiu Xavier; MOREIRA, Fernanda Gonçalves. Panorama atual de drogas e dependências. São Paulo:Editora Atheneu, 2006, p. 395-400.
BUCHER, Richard. Drogas e drogadição no Brasil. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP). Referência técnica para atuação de psicólogas(os) em políticas públicas de atenção a álcool e outras drogas. 2 Edição. Brasília: CFP, 2019.
ESPINHEIRA, Carlos Geraldo D’Andrea. Os tempos e os espaços das drogas. In: TAVARES, Luiz Alberto; et al. Drogas: tempos, lugares e olhares sobre seu consumo. Salvador: CETAD/EDUFBA, 2004, p. 11-26.
GRUND, Jean-Paul C. Drug Use as a Social Ritual- Functionality, Symbolism and Determinants of Self-regulation. Rotterdam: Institut voor Verslavingsondersoek (IVO), Erasmus Universiteit Rotterdam, 1993, pp. 237-256.
NERY FILHO, Antônio. Porque os homens usam drogas? IN: NERY FILHO, Antônio; VALÉRIO, Andréa Leite R. Módulo para capacitação dos profissionais do projeto consultório de rua. Brasília: SENAD; Salvador: CETAD, 2010, p. 11-16.
RIBEIRO, Cynara Teixeira. Que lugar para as drogas no sujeito? Que lugar para o sujeito nas drogas? Uma leitura psicanalítica do fenômeno do uso de drogas na contemporaneidade. IN: Ágora, v. 12, n. 2, julho/dezembro de 2009, Rio de Janeiro, p. 333-346.



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